quarta-feira, 12 de setembro de 2012

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Apartamento Macabro - o homem que gostava de Mozart


— Valha-me Deus! — foi o que Marcos resmungou quando viu aquela montanha de roupas amarrotadas jogadas dentro da cesta de vime ao lado da máquina de lavar, localizada na curva esquerda da cozinha em forma de um L invertido – incluindo, dentro desta cesta no beco da cozinha, um par de calcinhas de sua mulher Jaqueline. Remendado na frente de uma das calcinhas de sua mulher, estava escrito em letras cor de rosa: VOCÊ ME AMA MESMO, OU SÓ QUER ME COMER?
Na primeira vez que Marcos leu aquilo, ele riu tanto, que pensou em colocar uma respostinha em sua cueca: Querida eu te amo muito, por isso mesmo é que eu quero te comer!
Agora, quando ele viu aquela cesta cheia de roupas para passar, a graça tinha ido para o beleléu.
Obviamente, a encarregada daquela tarefa era a empregada Maria Rita. Porém, devido a uma hanseníase na família (um sobrinho muito próximo de Maria Rita que, dois dias depois de visitá-la trabalhando naquele apartamento amaldiçoado, a doença progrediu como um alagamento em dia de chuva e agora o menino estava em estado terminal em um pronto-socorro público) tirou alguns dias de folga. Isto posto, aquela tarefa caíra nas costas de Marcos e ele reclamava como um capeta.
Levou o cesto em direção a despensa, aonde localizava a tábua de passar roupa presa a um nicho na parede. Marcos abaixou a tábua e, antes de começar a trabalhar, deixou o berço de seu filho Mozart, de apenas três meses, próximo à porta da despensa, para que não pudesse perdê-lo de vista um só instante. Mesmo assim, o bebê (cujo nome Mozart era uma singela homenagem ao famoso compositor austríaco do século XVIII) começou a chorar sem parar. Provavelmente sentindo falta da mãe.
A mãe do garoto, Jaqueline, era professora de português em um colégio particular há 15 quilômetros ao norte da Avenida Paulista. Portanto, não demoraria a chegar naquele entardecer. Marcos, que trabalhava por conta própria escrevendo noveletas de ficção científica (a maioria não prestava, mas ele escrevia assim mesmo), deu-se um tempo nos seus escritos para ajudar a sua mulher com as roupas e também com o Mozart.
Marcos e Jaqueline acabaram se conhecendo na faculdade, lugar ideal para começar um relacionamento sério o bastante para se pensar em casamento – Estando claro assim, que não é tão difícil encontrar um grande amor dentro de uma faculdade. Mozart, nascido dois meses depois do casamento, estaria predestinado a ser a criança mais bem amada deste mundo.
Estaria mesmo?
Agora, sozinho no apartamento, Marcos ligou o ferro da marca Walita que só a empregada costumava usar, girando o botão na potência rp3 – que era a potência especializada em tecidos como rayon e poliéster – quando o seu filhinho voltou a chorar implacavelmente.
— O que foi, coração?
Resolvendo deixar o seu filho mais próximo do calor de seu corpo, Marcos apoiou o ferro na grade lateral da tábua e foi pegar o bebê no colo. Por causa do calor, o bebê usava apenas uma fralda. Marcos ficou aliviado ao descobrir que a fralda de Mozart ainda estava limpa. Nesse caso, ele voltou aos seus afazeres. Exaustivamente.
Trabalhou como um condenado, não parando de passar as roupas nem mesmo quando o interfone tocou. Só pode ser uma das vizinhas fofoqueiras querendo saber se Jaqueline já retornou do trabalho. Foi à voz eloqüente que viera da mente de Marcos, tentando dissuadi-lo a acreditar naquilo.
O toque no interfone era, realmente, de uma das vizinhas do 12° ou 14° andar (o único dos seis apartamentos ainda em uso no 13° era justamente a de Marcos, pois ele não era supersticioso – e ele continuou não sendo supersticioso mesmo depois do acidente com a sua última vizinha do andar, que fora morta engasgada com um caroço de feijão cru). Porém, o que Marcos não sabia, era que o motivo daquele telefonema de uma das vizinhas de cima ou de baixo, não era para saber se a sua mulher já tinha retornado do trabalho... O real motivo daquele telefonema era para saber do que se tratava aquele cheiro de algo se queimando em seu apartamento.
Aquele maldito cheiro...
A última vez que um condômino reclamara de alguma coisa acontecendo de errado em sua casa, foi quando a mulher de Marcos esquecera a panela de pressão com o fogão elétrico ligado. Naquela ocasião, a panela acabou explodindo feijão por todos os lados – foi uma explosão tão violenta, que o prédio inteiro havia balançado sob as suas vigas de concretos. Naquele dia, quando Jaqueline retornou correndo para o apartamento ao ser avisada pelo celular, acabou vendo, espantada (após o incessante vapor de gás ter se diluído completamente e ela pudesse enxergar com mais clareza), as paredes e o teto de sua cozinha toda imunda com o acúmulo do feijão que espirrara de dentro da panela estourada. Devido a força da explosão, o que havia sobrado da sua panela de pressão não foi nada mais do que uma matéria de alumínio derretida, e o rombo no fogão, tão grande, que o fez partir em dois cascos iguais, dobrados como roscas. Parecia, literalmente, que alguém tinha feito uma sonora merda e depois a jogado em direção ao ventilador.
É isso que acontece também quando uma pessoa não tampa adequadamente uma panela de pressão sobre o fogo máximo.
Jaqueline havia dito, mais tarde, que tinha certeza absoluta de que havia desligado o fogo antes de sair. Isso aconteceu há duas semanas atrás. E foi exatamente este o episódio que veio à lembrança de Marcos quando o interfone no 12° ou 14° andar começou a tocar sem parar. Ele resolveu não atender.
Talvez, por ainda estar refletindo sobre aquele episódio ocorrido na cozinha de seu apartamento há duas semanas atrás, Marcos acabou não se dando conta de ter colocado o seu filho deitado em cima da tábua de passar roupas... Assim, ele ergueu o ferro e, com a cabeça ladeada e os olhos revirados, aconteceu uma grande desgraça...
O bebê chorou novamente, mas agora de dor... Depois veio o berro... Depois o som tétrico de algo se torrando...
Fliisssssssssss.
Poucos minutos depois houve um barulho de guizo da porta na sala se abrindo. Era a sua mulher chegando do trabalho, seguindo em direção a despensa.
— Amor, você cuidou bem do nosso coração?
Jaqueline não precisou esperar por respostas. Em meio ao jato rugoso de vapor espalhando-se sobre a tábua de passar roupas, ela viu o seu marido de cabeça ladeada e olhos revirados trabalhando como um alucinado enquanto ouvia Eine Kleine Nachtmusik de Wolfgang Amadeus Mozart – cujo som instrumental vinha de um Rádio-Despertador posto em cima da máquina de lavar. Jaqueline viu, e ouviu, também, a equimose por todo o corpo de seu filhinho ir resfolegando sangue enquanto ele ia sendo assado vivo pelas mãos do próprio pai... Viu, a pele em carne viva de seu filho Mozart se encapelar cheio de gangrena para depois se fundir por dentro do próprio corpo segregado em pus. Os olhinhos mórbidos do bebê se romperam feito um... par de uvas dentro de um microondas. Em seguida foi à vez das veias se romperem. A mãe viu tudo isso, inclusive os bracinhos e as perninhas do filho ficando estorricados, parecendo quatro pequenos tentáculos negros. O bebê, que obviamente já era bem pequeno, agora encolhera a um embrião do tamanho de uma larva queimada.
Tudo isso, agora, ao som da Marcha Turca.
— CoraÇAÕOO! — a mãe gritou em meio ao volume da música clássica. Devido ao choque, todos os órgãos do corpo dela se apertaram, como se alguém os comprimissem com uma corda de arames. Mesmo assim Marcos não parava de assar o próprio filho.
Fliisssssssssss.


Uma eternidade de segundos se passou e, antes que Jaqueline desmoronasse no chão e só se levantasse dentro de um Manicômio Municipal, ela sentiu o apartamento inteiro se estreitando em volta de seu corpo... As paredes começaram a se contraírem e a se liquefazer em uma massa lantânica. Os vidros das janelas se estilhaçaram para fora em um projétil de cacos. Uma legião de tentáculos espinhosos, com centenas de olhos sem pálpebras por toda a sua extremidade, escoou das fendas abertas nas paredes junto a uma porção de larvas com olhos azuis de bebês – mortos queimados há séculos atrás –, que surgiram de baixo do piso cerâmico que agora se transformara em uma garganta despesçoçada. As larvas e os tentáculos passaram a destruir tudo em volta da casa ao som de uma terrível bricomania de rangidas de dentes. Isso aconteceu, mais ou menos, meia hora antes de dois policiais e um padre exorcista invadirem o apartamento e o encontrar em ruínas.
Não encontraram Marcos.
Aquela altura, Marcos (ou o demônio que controlava os movimentos de Marcos), com a cabeça ladeada e os olhos revirados para dentro da nuca como se tivesse encarando o próprio cérebro, já tinha saltado da janela do décimo terceiro andar de seu apartamento.                                          
                                             
Autor: Mauro Alves





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