quarta-feira, 26 de setembro de 2012

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Ao cair da noite



    Abr


     Abro os olhos. Meus batimentos cardíacos estão acelerados.
     Estou andando à passos largos e preocupados. Olho ao redor e dessa vez me encontro em meio a uma floresta.
     Era noite, e a luz da lua cheia era a única iluminação que ali havia.
     Senti uma forte dor no meu ombro esquerdo, olhei e vi que tinha um corte profundo, cujo era coberto por um pedaço de tecido na tentativa de estancar o sangramento.
      Senti um leve toque em meu ombro, e foi então que percebi que não estava só, estava na companhia de uma mulher jovem de pele morena, lindos olhos escuros que brilhavam com a luz da lua e cabelos longos e tão escuros que lembravam o véu da noite. Estava vestida com roupas de época e não aparentava ter mais que 23 anos.

      Ali, agarrada as suas pernas pela baixa altura, estava uma garotinha incrivelmente parecida com ela. Com lindos olhos verdes que mais pareciam duas esmeraldas. Ambas atrás de mim.
      Estavam assustadas. Se escondiam de algo que até então a mim era desconhecido.
      Espantei-me ao escutar a garotinha que insistentemente me chamava de pai. Tudo estava muito confuso no meio daquele turbilhão de acontecimentos. Não podia ser verdade tudo aquilo, mas o sentimento paterno que insistia em dominar minhas ações, me fez deixar de lado a razão para me deixar guiar pela emoção.
     Sendo assim, cheguei a conclusão de que aquela mulher poderia ser a minha esposa. Talvez quisesse, ou talvez naquele momento tivesse me apaixonado, pois mesmo com a expressão de medo, tinha o rosto mais belo que já vi. Era linda, não sei dizer.
      Olhei para elas, lhes perguntei seus nomes e quase que de imediato me devolveram um olhar que pareciam me interrogar de volta.
      – O que esta acontecendo? Não se recorda de nós? - disse a bela jovem.
      Eu nada consegui responder. Ela percebendo meu olhar de espanto completa:
      – Me chamo Alice, e essa é a pequena Anabel, sua filha!
      Meu corpo ficou estático por alguns instantes. Como entender que tudo aquilo estava realmente acontecendo. A sensação de conhecê-las era tão grande que não me importei.
      Lá estava eu novamente em algum lugar que não conhecia, mas pelas roupas que eu usava deveriam ser da época do século XVI.
      As arvores nos escondiam em meio a densa, fria e escura noite em que estávamos expostos.
     Não entendia o que estava acontecendo em meio toda aquela escuridão, euforia e medo. Só tinha uma certeza; de que elas dependiam de mim e da minha proteção.
     Ouvi um rosnar ao longe, e que não se comparava a nem um animal que conhecia. Um rosnar perturbador que me arrepiava os pêlos do corpo e que lentamente se aproximava, cada vez mais perto...
      Grrr..., grrr..., grrr...
      Olhei ao ,eu redor, a procura de algo que me pudesse servir de arma para uma possível e frustrante tentativa de defesa. Porém, nada encontrei.
     Ao mover meu corpo, senti um pequeno peso em minha cintura, era uma garrucha que estava do lado direito e do lado esquerdo um longo sabre de prata.
      Empunhei firmemente o sabre em minha mão direita, pronto pra qualquer ataque inesperado que pudesse machucar minhas protegidas.
     Entre as sombras das arvores, olhava ao redor tentando encontrar uma saída para aquele terrível momento.
      Caminhei floresta adentro, e o maldito rosnar seguindo-me como se esperasse algum deslize meu. Perguntava-me por que não me ataca de uma vez? Já que estava em desvantagem.
      Com um pouco de dificuldade, segurei Anabel em meus braços.
      Olhava ao redor tentando ver aquilo que me seguia. Foi então que entre as folhagens, pude ver aqueles medonhos olhos amarelos que mais pareciam duas fornalhas incandescentes.
     Percorremos um longo caminho, e Alice permaneceu o tempo todo agarrada as minhas vestes. Olhava atento, pois a companhia dos malditos rosnados que me arrepiavam ainda se fazia presente.
      Finalmente chegamos a algum lugar. Uma casa enorme e antiga, que me parecia normal para aquela época. Tinha um enorme muro coberto por musgo, e tomado por trepadeiras que davam um ar de abandono. No centro, um portão feito com enormes grades de ferro, o que naquela noite parecia a coisa mais segura que pudesse existir.
      Por sorte estava aberto, mas tive um pouco de dificuldade em abrir o portão com o ombro machucado, pois era grande e muito pesado, mas com a ajuda de Alice consegui.  
     Corremos em meio a folhas secas do caminho que ficavam a alguns metros longe da imensa casa que já podíamos ver. Confesso que fiquei com medo de estar abandonada, pelo fato de ser tão mal cuidada.
     Chegamos finalmente até a porta principal. Batemos desesperadamente pedindo ajuda, foi então que percebi luzes de vela que trepidavam, se aproximarem.
     Quando a porta foi aberta, fui surpreendido com uma imensa garrucha apontando em minha direção, e logo em seguida, uma voz perguntando em tom alto e mal humorado:
      Quem bate à minha porta as altas horas da noite?
      Era um homem humilde, que pela aparência cansada, não deveria ter menos que 45 anos. Pedi desculpas e relatei o que aconteceu nos últimos instantes floresta à dentro. Ele olhando para Alice e Anabel, abaixou a arma e humildemente nos ofereceu abrigo. Agradeci e adentramos em sua residência.
     O homem se chamava Jonas, e disse que morava só naquela imensa casa desde a morte da esposa. Não entrei em detalhes, ainda mais naquela situação. 
     Abriguei Alice juntamente com Anabel no quarto mais seguro que encontrei e em seguida tranquei as portas.
     Olhando a mancha de sangue em meu ombro, Jonas se preocupou em cuidar do meu ferimento. Agradeci, mas disse que não havia tempo.
     Observando minha situação, Jonas correu em direção a um dos aposentos da casa e ao retornar trouxe consigo algo coberto com um lenço. Mostrou-me então uma arma de porte maior da que eu possuía, e logo em seguida disse:
      Pegue filho, será de grande ajuda, pois de nada servirá para esse pobre velho. Proteja aquilo que ama, coisa que não pude fazer...
      Olhando fixo em seus olhos, pude perceber o pesar em seu olhar. Não queria correr o risco de me lamentar como aquele pobre homem fazia naquele momento. Agradeci fazendo um gesto com a cabeça, em seguida guardei o sabre que empunhava de volta na cintura.
      Segurando firme a arma que acabara de ganhar e seguindo os conselhos de Jonas, fomos em direção a sala que ficava a alguns metros do quarto. Ele se armou com sua garrucha, e juntos, nos prostramos em guardar a entrada da casa como sentinelas. Eu pensando primeiramente na segurança das duas que comigo chegaram.
     Ficamos por horas aguardando, e nenhum movimento se quer da tal criatura de olhos amarelos.
     O tempo foi passando, e estávamos cada vez mais cansados, porém, Jonas permaneceu fiel. Fiel a um estranho que lhe pedia ajuda no meio da noite.
     Longas horas depois, ouvimos um rosnar medonho que parecia vir do outro lado do imenso portão. Sabia que era ele, aquele maldito ser que me seguia nesse terrível pesadelo, sabia também que teria de por um fim nisso.
      Escutei um grande barulho. Parecia que algo havia se chocado no portão, algo que realmente quisesse entrar.
      Escutei o portão se abrir. Dali viria algo que não queria encontrar nem no meu pior pesadelo.
      O barulho de pisadas nas folhas secas no chão, ficavam cada vez mais perto, e mais perto. Um grande rugido indicava que a fera estava à frente da casa, e sabíamos que aquela porta de madeira não iria agüentar por muito tempo.
     Fortes arranhões faziam a porta feita com madeira de lei estremecer. Vi garras abrirem um imenso buraco. Foi por onde vi mais uma vez seu olhar maligno me encarar.
     Voltei meu olhar para Jonas, e nos preparamos para o pior.
     A porta veio abaixo fazendo um grande estrondo. Minha mão tremia de medo, mas não podia desistir. Foi então que finalmente vi e encarei diretamente aquela figura horrível. Era como um grande lobo de pêlos escuros como as trevas, tinha um olhar maligno de congelar de medo o mais corajoso dos heróis, grandes garras afiadas, e imensos caninos que mal cabiam em sua boca. Podia ver aquele demônio salivar de ansiedade pelo o sangue das suas vitimas.
     Jonas continuou ao meu lado, apesar de poder ver a face de pavor no seu rosto. Ele não abandonou seu posto. Apontado sua garrucha em direção a horrenda criatura e em seguida disparando.
      – Acertei! - Jonas gritou eufórico.
      E realmente acertou, mas parecia que nem um dano lhe foi causado, apenas encheu de mais ódio seus olhos incandescestes.
      A criatura rugiu tão alto que me arrepiou a espinha. Sabia que daquele momento em diante, seria travada uma batalha sangrenta pela nossa sobrevivência.
      Pude ver a posição de ataque da imensa criatura que vinha em minha direção. Já podia sentir o calor de sua respiração no meu pescoço. De repente, a criatura num único salto foi ao encontro de Jonas.
      Meu corpo congelou de pavor ao ver que Jonas era destroçado. Seu peito foi brutalmente aberto, suas vísceras agora estavam expostas. Vi aquele demônio se fartar dos restos do pobre homem.
      Com a boca coberta de sangue ele se voltou a mim. Olhei fixamente aqueles olhos que pareciam me devorar, e ele percebeu o pavor no meu olhar. Tentei disparar, mas errei, e sabia que aquela era minha ultima chance de defesa.
      Devido ao grande movimento, gritos e tiros, Anabel chorava assustada.
      Escutei seu choro tímido que vinha do quarto, mas infelizmente não fui o único a escutar.
     Saindo em disparada e guiado pelo choro de Anabel, aquele ser das trevas foi ao encontro de suas presas. Corri desesperado atrás da fera que ligeiramente chegou ao quarto onde elas se encontravam. Pude ouvir o rosnar ao longe, e não consegui pensar em mais nada a não ser em Anabel.
     Cheguei a porta do quarto e não as vi, apenas o silencio tomava conta do ambiente. Já sem forças cai por completo. Fiquei de joelhos em meio das lagrimas que escorriam dos meus olhos.
      Não podia perdê-las, não daquela forma, não para aquela coisa. - pensei.
     Foi quando ouvi o grito de Anabel vindo alguns metros da porta do quarto. Vi Alice que empunhava um grande garfo de feno na tentativa de proteger a pequena Anabel, que se encontrava atrás de sua guardiã que estava disposta a dar sua vida por ela.
     Minhas pernas paralisaram. Queria fazer algo, mas não consegui, o medo de perdê-las me congelou.
     A besta atacou ferozmente Alice, ferindo-a no braço direito. Por um instante, pude ver alegria naqueles olhos diabólicos que pareciam gostar do que viam.
     Não podia vê-las serem destroçadas por aquela coisa. Não tinha outra escolha a não ser encarar meu medo! Então a raiva tomou conta de mim, senti algo que tentava se libertar.
      Veio-me a lembrança de como ganhei aquele ferimento no ombro esquerdo. Foi aquele maldito demônio. Como sombra ele invadiu minha humilde casa, não pude reconhecer o que era aquela coisa em meio a escuridão, apenas senti um forte golpe em meu ombro esquerdo. Num golpe de sorte, o surpreendi com uma grande barra de ferro, e assim pude ganhar tempo e adentrar na escuridão da floresta.
     A dor tremenda percorria todo o meu corpo, me fez deixar as lembranças e viver o presente.
     Logo escutei os ossos da minha face dilatarem, meus caninos aumentaram de tamanho a ponto de não caberem em minha boca. Os pelos dos meus braços se misturavam com o resto do corpo que crescia rapidamente. Nas minhas mãos estavam agora imensas garras, que com elas deixei as marcas da minha dor no chão de madeira.  Em seguida, senti meus braços e pernas aumentarem de tamanho, a tal ponto que pareciam que iam explodir de tanta raiva. Vi minhas vestes se rasgarem por não aguentarem a pressão que meus braços e pernas faziam.
     Soltei um rugido seguido de um uivo tão forte que até a mim pôs medo. Sem nada nas mãos, corri em direção do monstro, mas já não conseguia ficar de pé. Corri feito um quadrúpede e então percebi que teríamos uma luta de igual para igual.
      Ficamos como duas feras brigando por território, o rodeava e ele fazia o mesmo. Olhei para Alice e ela me retorna com um olhar desesperado, natural para aquela situação. Cheguei perto a acariciando com a cabeça como se dissesse “ainda sou eu”. Também vi a pequena Anabel me olhar com espanto, escondendo-se atrás de Alice.
      Voltei a encarar a fera, pois sabia que era meu dever tirá-lo de perto das minhas protegidas.
      O maldito soltou um uivo antecipando a sua vitória, aproveitei seu momento de distração e num golpe certeiro de punho fechado acertei violentamente as suas costelas e assim afastando-o.
     Eu Mostrava os dentes salivando, e rugia feito um animal selvagem ao lembrar-me do que aquela coisa tinha feito com a bela Alice.
     A fera se prostrou a atacar. Recebi vários golpes em vários lugares do meu corpo, mas com o ódio que tomava conta de mim, nada senti. Sentia apenas a vontade de acabar com aquela coisa com as minhas próprias mãos.
     Nos enrolamos em um amontoado de pêlos, e entre golpes a luta continuava.
     Me senti fraco, cai no chão e logo em seguida pude sentir aquela imensa pata apertando minha cabeça, quase a ponto de quebrar meu crânio. Olhou-me nos olhos e soltou um rugido na minha face, senti medo ao encarar a morte frente a frente.
     Deixando-me de lado como se quisesse me deixar ver a cena que viria a seguir, foi caminhando lentamente visando Alice. O maldito salivava, parecia sentir o cheiro do pavor que causava e prazer a cada passo dado.
     Tentei levantar, mas foi em vão.
     O tempo parou naquele momento, imaginei como seria a vida  junto daquelas a quem dei a vida para proteger. A felicidade que nunca experimentei e os beijos no rosto que nunca ganhei da pequenina Anabel, que ali estava a ponto de ser devorada por aquela besta infernal.
     Não podia deixar aquilo acabar assim, não podia perdê-las e não daquela forma.
     Um grito que ecoou nos meus ouvidos me fez despertar. Era a pequenina gritando de pavor da morte que se aproximava em passos lentos.
     O medo de perdê-las era maior que o medo da morte e sabia que não podia me entregar...
     Consegui então me erguer, em seguida agarrei uma de suas patas traseiras e o puxei de volta. Na tentativa de agarrá-las, a fera desferia vários golpes no ar.
     Tentou travar suas garras no chão de madeira, mas foi em vão. O puxei com força e recomeçamos assim a batalha que decidiria o futuro das minhas protegidas.
     Estava fraco por causa dos ferimentos da ultima luta.
     Tento com todas as forças vencer as trevas encarnada que ali estava. Via que ele também estava fraco, sangrava muito e cambaleava entre seus passos. Tentou rugir para me afastar, mas o surpreendi com outro rugido mais forte e mais alto ainda. Foi então que ele novamente veio a me atacar.
     Saltamos ao mesmo tempo, e em pleno ar o surpreendi com uma voraz mordida na sua jugular, fazendo-o agonizar.
     Finalmente poder ver aqueles olhos amarelos carregados de trevas se converterem em algo sem vida.
     Percebi que minhas protegidas estavam assustadas e olhavam para mim. Então com muito esforço segui lentamente ao encontro delas.
     Sem forças, me entreguei a dor e ao cansaço que já não conseguia mais suportar.
     Tombei perto de onde elas estavam. Foi quando já sentindo meus membros voltarem ao normal, também percebi que estava sangrando muito, pois tinha um corte profundo no peito.
     Já caído ao chão, vi Alice me olhando com os olhos cheios de lagrimas, apoiando minha cabeça em seu colo e acariciando meu rosto me perguntou:
      Por quê?
      Toquei-lhe o rosto e uma lagrima caiu do meu olhar. Ao meu lado olhei a pequena Anabel chorando. Acariciei sua mão e senti o aperto firme que ela fazia.
      – Papai... - disse ela com a voz tremula.
      Olhei para elas pela ultima vez e logo depois fechei os olhos. Parti com a certeza que de todas as formas protegi aquilo que pra mim era o mais importante...                        

FIM
 

      Fernando Calixto

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