Abr
Abro os olhos. Meus batimentos cardíacos estão acelerados.
Estou
andando à passos largos e preocupados. Olho ao redor e dessa vez me encontro em
meio a uma floresta.
Era noite, e a luz da lua cheia era a
única iluminação que ali havia.
Senti uma forte dor no meu ombro esquerdo,
olhei e vi que tinha um corte profundo, cujo era coberto por um pedaço de
tecido na tentativa de estancar o sangramento.
Senti um leve toque em meu ombro, e foi então
que percebi que não estava só, estava na companhia de uma mulher jovem de pele
morena, lindos olhos escuros que brilhavam com a luz da lua e cabelos longos e
tão escuros que lembravam o véu da noite. Estava vestida com roupas de época e
não aparentava ter mais que 23 anos.
Ali, agarrada as suas pernas pela baixa
altura, estava uma garotinha incrivelmente parecida com ela. Com lindos olhos
verdes que mais pareciam duas esmeraldas. Ambas atrás de mim.
Estavam
assustadas. Se escondiam de algo que até então a mim era desconhecido.
Espantei-me ao escutar a garotinha que insistentemente
me chamava de pai. Tudo estava muito confuso no meio daquele turbilhão de
acontecimentos. Não podia ser verdade tudo aquilo, mas o sentimento paterno que
insistia em dominar minhas ações, me fez deixar de lado a razão para me deixar
guiar pela emoção.
Sendo assim, cheguei a conclusão de que
aquela mulher poderia ser a minha esposa. Talvez quisesse, ou talvez naquele
momento tivesse me apaixonado, pois mesmo com a expressão de medo, tinha o
rosto mais belo que já vi. Era linda, não sei dizer.
Olhei para elas, lhes perguntei seus nomes e
quase que de imediato me devolveram um olhar que pareciam me interrogar de
volta.
– O que esta acontecendo? Não se recorda de
nós? - disse a bela jovem.
Eu nada consegui responder. Ela percebendo meu
olhar de espanto completa:
– Me chamo Alice, e essa é a pequena
Anabel, sua filha!
Meu corpo ficou estático por alguns instantes. Como
entender que tudo aquilo estava realmente acontecendo. A sensação de
conhecê-las era tão grande que não me importei.
Lá estava eu novamente em algum lugar que não
conhecia, mas pelas roupas que eu usava deveriam ser da época do século XVI.
As arvores nos escondiam em meio a densa,
fria e escura noite em que estávamos expostos.
Não entendia o que estava acontecendo em
meio toda aquela escuridão, euforia e medo. Só tinha uma certeza; de que elas
dependiam de mim e da minha proteção.
Ouvi
um rosnar ao longe, e que não se comparava a nem um animal que conhecia. Um
rosnar perturbador que me arrepiava os pêlos do corpo e que lentamente se
aproximava, cada vez mais perto...
– Grrr..., grrr..., grrr...
Olhei ao ,eu redor, a procura de algo que me
pudesse servir de arma para uma possível e frustrante tentativa de defesa. Porém,
nada encontrei.
Ao
mover meu corpo, senti um pequeno peso em minha cintura, era uma garrucha que
estava do lado direito e do lado esquerdo um longo sabre de prata.
Empunhei firmemente o sabre em minha mão
direita, pronto pra qualquer ataque inesperado que pudesse machucar minhas
protegidas.
Entre as sombras das arvores, olhava ao redor tentando
encontrar uma saída para aquele terrível momento.
Caminhei floresta adentro, e o maldito rosnar
seguindo-me como se esperasse algum deslize meu. Perguntava-me por que não me
ataca de uma vez? Já que estava em desvantagem.
Com um pouco de dificuldade, segurei Anabel em
meus braços.
Olhava
ao redor tentando ver aquilo que me seguia. Foi então que entre as folhagens,
pude ver aqueles medonhos olhos amarelos que mais pareciam duas fornalhas
incandescentes.
Percorremos um longo caminho, e Alice
permaneceu o tempo todo agarrada as minhas vestes. Olhava atento, pois a companhia
dos malditos rosnados que me arrepiavam ainda se fazia presente.
Finalmente chegamos a algum lugar. Uma casa
enorme e antiga, que me parecia normal para aquela época. Tinha um enorme muro
coberto por musgo, e tomado por trepadeiras que davam um ar de abandono. No
centro, um portão feito com enormes grades de ferro, o que naquela noite
parecia a coisa mais segura que pudesse existir.
Por sorte estava aberto, mas tive um pouco de
dificuldade em abrir o portão com o ombro machucado, pois era grande e muito
pesado, mas com a ajuda de Alice consegui.
Corremos em meio a folhas secas do caminho
que ficavam a alguns metros longe da imensa casa que já podíamos ver. Confesso
que fiquei com medo de estar abandonada, pelo fato de ser tão mal cuidada.
Chegamos finalmente até a porta principal. Batemos
desesperadamente pedindo ajuda, foi então que percebi luzes de vela que
trepidavam, se aproximarem.
Quando a porta foi aberta, fui surpreendido
com uma imensa garrucha apontando em minha direção, e logo em seguida, uma voz
perguntando em tom alto e mal humorado:
– Quem
bate à minha porta as altas horas da noite?
Era um homem humilde, que pela aparência cansada, não deveria ter menos
que 45 anos. Pedi desculpas e relatei o que aconteceu nos últimos instantes
floresta à dentro. Ele olhando para Alice e Anabel, abaixou a arma e
humildemente nos ofereceu abrigo. Agradeci e adentramos em sua residência.
O
homem se chamava Jonas, e disse que morava só naquela imensa casa desde a morte
da esposa. Não entrei em detalhes, ainda mais naquela situação.
Abriguei Alice juntamente com Anabel no quarto
mais seguro que encontrei e em seguida tranquei as portas.
Olhando a mancha de sangue em meu ombro, Jonas se preocupou em cuidar do meu
ferimento. Agradeci, mas disse que não havia tempo.
Observando minha situação, Jonas correu em
direção a um dos aposentos da casa e ao retornar trouxe consigo algo coberto
com um lenço. Mostrou-me então uma arma de porte maior da que eu possuía, e
logo em seguida disse:
–
Pegue filho, será de grande ajuda, pois de nada servirá para esse pobre velho.
Proteja aquilo que ama, coisa que não pude fazer...
Olhando fixo em seus olhos, pude perceber o pesar em seu olhar. Não
queria correr o risco de me lamentar como aquele pobre homem fazia naquele
momento. Agradeci fazendo um gesto com a cabeça, em seguida guardei o sabre que
empunhava de volta na cintura.
Segurando firme a arma que acabara de ganhar e
seguindo os conselhos de Jonas, fomos em direção a sala que ficava a alguns
metros do quarto. Ele se armou com sua garrucha, e juntos, nos prostramos em
guardar a entrada da casa como sentinelas. Eu pensando primeiramente na
segurança das duas que comigo chegaram.
Ficamos por horas aguardando, e nenhum
movimento se quer da tal criatura de olhos amarelos.
O
tempo foi passando, e estávamos cada vez mais cansados, porém, Jonas permaneceu
fiel. Fiel a um estranho que lhe pedia ajuda no meio da noite.
Longas horas depois, ouvimos um rosnar medonho que parecia vir do outro lado do
imenso portão. Sabia que era ele, aquele maldito ser que me seguia nesse
terrível pesadelo, sabia também que teria de por um fim nisso.
Escutei um grande barulho. Parecia que algo
havia se chocado no portão, algo que realmente quisesse entrar.
Escutei o portão se abrir. Dali viria
algo que não queria encontrar nem no meu pior pesadelo.
O barulho de pisadas nas folhas secas no chão,
ficavam cada vez mais perto, e mais perto. Um grande rugido indicava que a fera
estava à frente da casa, e sabíamos que aquela porta de madeira não iria
agüentar por muito tempo.
Fortes arranhões faziam a porta feita com
madeira de lei estremecer. Vi garras abrirem um imenso buraco. Foi por onde vi
mais uma vez seu olhar maligno me encarar.
Voltei meu olhar para Jonas, e nos preparamos
para o pior.
A porta veio abaixo fazendo um grande
estrondo. Minha mão tremia de medo, mas não podia desistir. Foi então que
finalmente vi e encarei diretamente aquela figura horrível. Era como um grande
lobo de pêlos escuros como as trevas, tinha um olhar maligno de congelar de
medo o mais corajoso dos heróis, grandes garras afiadas, e imensos caninos que
mal cabiam em sua boca. Podia ver aquele demônio salivar de ansiedade pelo o
sangue das suas vitimas.
Jonas continuou ao meu lado, apesar de poder ver
a face de pavor no seu rosto. Ele não abandonou seu posto. Apontado sua
garrucha em direção a horrenda criatura e em seguida disparando.
– Acertei! - Jonas gritou eufórico.
E realmente acertou, mas parecia que nem um dano lhe foi causado,
apenas encheu de mais ódio seus olhos incandescestes.
A
criatura rugiu tão alto que me arrepiou a espinha. Sabia que daquele momento em
diante, seria travada uma batalha sangrenta pela nossa sobrevivência.
Pude ver a posição de ataque da imensa
criatura que vinha em minha direção. Já podia sentir o calor de sua respiração
no meu pescoço. De repente, a criatura num único salto foi ao encontro de Jonas.
Meu corpo congelou de pavor ao ver que Jonas
era destroçado. Seu peito foi brutalmente aberto, suas vísceras agora estavam
expostas. Vi aquele demônio se fartar dos restos do pobre homem.
Com a boca coberta de sangue ele se voltou a
mim. Olhei fixamente aqueles olhos que pareciam me devorar, e ele percebeu o
pavor no meu olhar. Tentei disparar, mas errei, e sabia que aquela era minha
ultima chance de defesa.
Devido ao grande movimento, gritos e
tiros, Anabel chorava assustada.
Escutei
seu choro tímido que vinha do quarto, mas infelizmente não fui o único a
escutar.
Saindo em disparada e guiado pelo choro de Anabel, aquele ser das trevas foi ao
encontro de suas presas. Corri desesperado atrás da fera que ligeiramente
chegou ao quarto onde elas se encontravam. Pude ouvir o rosnar ao longe, e não
consegui pensar em mais nada a não ser em Anabel.
Cheguei a porta do quarto e não as vi, apenas
o silencio tomava conta do ambiente. Já sem forças cai por completo. Fiquei de
joelhos em meio das lagrimas que escorriam dos meus olhos.
– Não
podia perdê-las, não daquela forma, não para aquela coisa. -
pensei.
Foi quando ouvi o grito de Anabel vindo alguns
metros da porta do quarto. Vi Alice que empunhava um grande garfo de feno na tentativa
de proteger a pequena Anabel, que se encontrava atrás de sua guardiã que estava
disposta a dar sua vida por ela.
Minhas pernas paralisaram. Queria fazer algo,
mas não consegui, o medo de perdê-las me congelou.
A besta atacou ferozmente Alice, ferindo-a
no braço direito. Por um instante, pude ver alegria naqueles olhos diabólicos
que pareciam gostar do que viam.
Não podia vê-las serem destroçadas por aquela coisa. Não tinha outra
escolha a não ser encarar meu medo! Então a raiva tomou conta de mim, senti
algo que tentava se libertar.
Veio-me a lembrança de como ganhei aquele
ferimento no ombro esquerdo. Foi aquele maldito demônio. Como sombra ele
invadiu minha humilde casa, não pude reconhecer o que era aquela coisa em meio
a escuridão, apenas senti um forte golpe em meu ombro esquerdo. Num golpe de
sorte, o surpreendi com uma grande barra de ferro, e assim pude ganhar tempo e
adentrar na escuridão da floresta.
A dor tremenda percorria todo o meu corpo, me
fez deixar as lembranças e viver o presente.
Logo
escutei os ossos da minha face dilatarem, meus caninos aumentaram de tamanho a
ponto de não caberem em minha boca. Os pelos dos meus braços se misturavam com
o resto do corpo que crescia rapidamente. Nas minhas mãos estavam agora imensas
garras, que com elas deixei as marcas da minha dor no chão de madeira. Em seguida, senti meus braços e pernas
aumentarem de tamanho, a tal ponto que pareciam que iam explodir de tanta
raiva. Vi minhas vestes se rasgarem por não aguentarem a pressão que meus
braços e pernas faziam.
Soltei um rugido seguido de um uivo tão forte
que até a mim pôs medo. Sem nada nas mãos, corri em direção do monstro, mas já
não conseguia ficar de pé. Corri feito um quadrúpede e então percebi que teríamos
uma luta de igual para igual.
Ficamos como duas feras brigando por
território, o rodeava e ele fazia o mesmo. Olhei para Alice e ela me retorna
com um olhar desesperado, natural para aquela situação. Cheguei perto a
acariciando com a cabeça como se dissesse “ainda sou eu”. Também vi a pequena Anabel
me olhar com espanto, escondendo-se atrás de Alice.
Voltei a encarar a fera, pois sabia que era
meu dever tirá-lo de perto das minhas protegidas.
O
maldito soltou um uivo antecipando a sua vitória, aproveitei seu momento de
distração e num golpe certeiro de punho fechado acertei violentamente as suas
costelas e assim afastando-o.
Eu Mostrava os dentes salivando, e rugia feito um animal selvagem ao lembrar-me
do que aquela coisa tinha feito com a bela Alice.
A
fera se prostrou a atacar. Recebi vários golpes em vários lugares do meu corpo,
mas com o ódio que tomava conta de mim, nada senti. Sentia apenas a vontade de
acabar com aquela coisa com as minhas próprias mãos.
Nos enrolamos em um amontoado de pêlos, e
entre golpes a luta continuava.
Me
senti fraco, cai no chão e logo em seguida pude sentir aquela imensa pata
apertando minha cabeça, quase a ponto de quebrar meu crânio. Olhou-me nos olhos
e soltou um rugido na minha face, senti medo ao encarar a morte frente a
frente.
Deixando-me de lado como se quisesse me deixar
ver a cena que viria a seguir, foi caminhando lentamente visando Alice. O
maldito salivava, parecia sentir o cheiro do pavor que causava e prazer a cada passo
dado.
Tentei levantar, mas foi em vão.
O
tempo parou naquele momento, imaginei como seria a vida junto daquelas a quem dei a vida para
proteger. A felicidade que nunca experimentei e os beijos no rosto que nunca
ganhei da pequenina Anabel, que ali estava a ponto de ser devorada por aquela
besta infernal.
Não
podia deixar aquilo acabar assim, não podia perdê-las e não daquela forma.
Um grito que ecoou nos meus ouvidos me fez despertar. Era a pequenina gritando
de pavor da morte que se aproximava em passos lentos.
O
medo de perdê-las era maior que o medo da morte e sabia que não podia me
entregar...
Consegui então me erguer, em seguida agarrei uma de suas patas traseiras e o
puxei de volta. Na tentativa de agarrá-las, a fera desferia vários golpes no
ar.
Tentou travar suas garras no chão de madeira,
mas foi em vão. O puxei com força e recomeçamos assim a batalha que decidiria o
futuro das minhas protegidas.
Estava fraco por causa dos ferimentos da ultima
luta.
Tento
com todas as forças vencer as trevas encarnada que ali estava. Via que ele
também estava fraco, sangrava muito e cambaleava entre seus passos. Tentou
rugir para me afastar, mas o surpreendi com outro rugido mais forte e mais alto
ainda. Foi então que ele novamente veio a me atacar.
Saltamos ao mesmo tempo, e em pleno ar o
surpreendi com uma voraz mordida na sua jugular, fazendo-o agonizar.
Finalmente poder ver aqueles olhos amarelos
carregados de trevas se converterem em algo sem vida.
Percebi que minhas protegidas estavam assustadas e olhavam para mim. Então com
muito esforço segui lentamente ao encontro delas.
Sem forças, me entreguei a dor e ao
cansaço que já não conseguia mais suportar.
Tombei perto de onde elas estavam. Foi quando
já sentindo meus membros voltarem ao normal, também percebi que estava
sangrando muito, pois tinha um corte profundo no peito.
Já
caído ao chão, vi Alice me olhando com os olhos cheios de lagrimas, apoiando
minha cabeça em seu colo e acariciando meu rosto me perguntou:
– Por quê?
Toquei-lhe o rosto e uma lagrima caiu do meu olhar.
Ao meu lado olhei a pequena Anabel chorando. Acariciei sua mão e senti o aperto
firme que ela fazia.
– Papai... - disse ela com a voz
tremula.
Olhei para elas pela ultima vez e logo depois fechei
os olhos. Parti com a certeza que de todas as formas protegi aquilo que pra mim
era o mais importante...
FIM
Fernando Calixto
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